PRODUTIZAÇÃO DO SONO
Como o capitalismo consegue transformar até o sono em descanso premium
No livro 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono, de 2016, o autor Jonathan Crary apresenta a teoria de que o sono é o único momento do nosso dia que o capitalismo ainda não conseguiu se enfiar. Felizmente, ainda não dá pra passar anúncio nos nossos sonhos. Só que como o tempo que estamos dormindo ocupa 1/3 do nosso dia (ou pelo menos deveria, segundo as recomendações de saúde) é uma perda para o capitalismo não monetizar de alguma maneira todo esse tempo. Então adotou-se a tática de diminuir esse tempo, fazendo com que a gente durma menos. O autor inclusive relata sobre pesquisas científicas em busca de uma fórmula para criar o “homem sem sono”.
Ainda não é possível ver essas tentativas mais radicais de eliminação, mas podemos perceber algumas mais sutis de diminuição. Jonathan Crary fala sobre uma necessidade de disponibilidade para consumir, trabalhar, compartilhar, responder, 24 horas por dia que nos mantêm acordados. Acho que podemos acrescentar a quantidade gigantesca de estimulos contínua via telas que, além de ter um efeito fisico de diminuir a melatonina natural do nosso corpo, sempre nos oferece algo mais para ver. E ainda temos todas as questões que permeiam a vida moderna e são fontes de ansiedade: mudanças climáticas, inflação, pouca perspectiva de futuro e por aí vai. Nem vou ficar listando muito pra não tirar o sono de ninguém.
Mas tenho a impressão de que, apesar da dificuldade para conseguir dormir (72% dos brasileiros sofrem com alterações no sono), o tempo de sono segue sendo algo muito valorizado. Pode ser que o lobby das 8 horas necessárias tenha sido muito bem feito (será que foram as empresas de colchão?) ou porque é algo que conseguimos saber, de maneira prática, como é bom e faz bem uma noite de sono bem dormida. As vantagens de uma boa noite de sono são imediatas, diferente de fazer exercícios por exemplos, que é preciso um tempinho para começar a experimentar as benesses.
E por causa dessa entrega de vantagem imediata do sono, me parece que rolou uma inversão: ao invés de tentar eliminar o tempo de sono, o capitalismo tornou ele um produto de luxo. Pensei nisso depois de ler essa matéria da Dazed que fala sobre “a era da otimização do sono”, que está fazendo com que ele vire um simbolo de status. A autora fala sobre como otimização do sono é uma das tendências de bem estar mais fortes, que a “insonia girl boss” sai de cena e entra a "obsessão com o desempenho do sono”. A matéria traz alguns exemplos de pessoas que criaram uma rotina pré sono super rígida, composta de diversos passos. A palavra “otimização” aqui não é por acaso e tem a ver com o macromovimento comportamental da busca por melhoria contínua, que falei inclusive na news anterior.
O ponto aqui é que essa valorização do desempenho do sono vem acompanhada de uma gama de produtos para possibilitar esse descanso premium. Buscando pela #sleeproutine no Tiktok, é possível ver vídeos de rotinas elaboradas, com vários passos preparatórios para a noite, usando uma variedade de produtos. Em um dos mais assistidos, com mais de 1,2milhão de likes, os produtos utilizados são: um spray de relaxamento, fronha de cetim, um tapa olho com pesos e uma fita para a boca, para garantir que a boca fique fechada e a respiração seja apenas pelo nariz.
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Talvez você assista esse vídeo com algum julgamento e pense "mas precisa mesmo de tudo isso apenas para dormir?” e minha resposta é que sim, provavelmente precisa. Não só porque no mundo acelerado e inflado de estímulos que vivemos fica mais difícil pegar no sono, mas também porque nessa produtização do sono não basta dormir, é preciso atingir o maior relaxamento possível. É sobrealcançar o sono premium que, claro, necessita dessa gama de produtos.
E além dos produtos focados em oferecer uma noite de sono melhor, ainda temos os produtos focados em MEDIR se você realmente teve uma noite de sono melhor, como os aplicativos e relógios smart. Segundo dados da SleepUp, 55% dos brasileiros monitoram o sono através de aplicativos e smartwatch. Inclusive a nova versão do Apple Watch apresentada há algumas semanas adiciona uma nova função, de detecção de apneia do sono. O relógio promete monitorar o padrão de respiração durante a noite e analisar para procurar sinais de apneia do sono. Segundo a matéria da New York Magazine, a marca tem um projeto de longo prazo de adicionar “capacidades de saúde” nos seus dispositivos. O que é bem irônico já que é muitas vezes é pelo estímulos do celular que não conseguimos dormir.
Um sinal dessa produtização do sono para alcançar um sono premium é a tendência de viagens para dormir. Lendo a revista da Gol durante um voo no ano passado, me deparei com essa reportagem sobre o movimento do TURISMO DO SONO: um turismo focado em relaxamento para se dormir melhor. Pode ser sobre o destino, um local repleto de natureza e silencio que por si só proporciona uma maior tranquilidade, ou sobre hotéis que usam recursos específicos para oferecer o sono mais restaurador possível. E esses recursos podem ser os clássicos: a cama do hotel, lençós mil fios e travesseiros de plumas, ou algumas novidades como essências relaxantes e máscaras com aromas de flores e ervas.
Importantante ressaltar que pra mim essa produtização do sono é diferente da higiene do sono. Pra quem não conhece, higiene do sono é uma série de práticas que favorecem a capacidade de adormecer, como controlar o uso de cafeína e parar de usar telas um tempo antes de ir dormir. Embora sejam bem parecidas, a higine ainda é algo que é algo possível fazer de graça ou com itens baratos, como um chá de camomila. Já a produtização parece estar crescendo como um segmento comecial novo.
O que me parece que as duas possuem em comum é que elas oferecem algo que estamos bem carentes atualmente: RITUALIZAÇÃO. Os rituais são práticas que estruturam a vida social e conferem sentido às ações humanas, mas que no tempo que estamos vivendo estão enfraquecendo. Byung-Chul Han fala como eles estão sendo trocados por ações utilitárias e eu penso que todos esses produtos talvez sejam uma forma de recuperar essa ritualização pré sono.
Passar um spray, usar 5 produtos de skincare ou colocar uma meditação guiada por um app, possivelmente é a forma que algumas pessoas encontraram de desacelerar da rotina caótica. E também criar um simbolismo para esse momento onde desligamos de mundo que não parece querer que a gente desligue. Pelo menos a produtização do sono é melhor para a nossa saúde do que o famoso “trabalhe enquanto eles dormem”.
Quando li Jonathan Crary na faculdade, lembro de ter me impactado pensar como o sono é restringido para umas pessoas ou incorporado ao trabalho de outras - com salas de descanso no trabalho vc nem precisa ir pra casa! A arquitetura hostil nas ruas impedem até que as pessoas em situação de miséria possam dormir. Achei muito interessante como vc descreveu essa produtização.