Por que a masculinidade parece não ter mudado nos últimos anos?
Enquanto as mulheres avançam, muitos homens seguem presos a modelos ultrapassados. O cuidado pode ser a chave para a mudança.
Há algum tempo, eu estava conversando com um amigo sobre a dificuldade que ele enfrentava para marcar consultas médicas e cuidar da saúde. Ele argumentou que a resistência vinha do estigma masculino de pedir ajuda: “Nós homens crescemos ouvindo que não podemos pedir ajuda nem demonstrar fraqueza.” Ao ouvir isso, meu primeiro pensamento foi: “Mas AINDA não superaram isso?”. Desde essa conversa tenho refletido com frequência: por que a masculinidade ainda não evoluiu?
A sensação que tenho é que a pauta da masculinidade foi a que menos avançou nos ultimos anos. É visível que estamos vivendo uma fase de retrocesso em geral, e que muitas das pautas de diversidade e inclusão estão perdendo forças. Mas me parece que a conversa sobre a descontrução da masculinidade não engrenou praticamente nada. Quando avançou, parece que foi de um jeito tão torto, que virou uma grande piada (vulgo todas as piadinhas de esquerdomachos). E depois o assunto simplesmente esfriou. Mas por que?


Há várias questões envolvidas na masculinidade que colocam os homens nesse lugar. Uma delas é a resistência em ser vulnerável e falar sobre sentimentos e fraquezas. Em uma pesquisa do psicólogo Ronald F. Levand, da Nova Southeastern University (EUA), ele até evoca a imagem do homem da Marlboro para exemplificar essa ideia de que ~homem de verdade não tem sentimentos~:
“Tente imaginar o homem da Marlboro em terapia. A imagem simplesmente não faz sentido, não é? O homem da Marlboro não admitiria precisar de ajuda. Ele não falaria sobre suas emoções. Aliás, talvez nem reconhecesse que as tem.”
Um absurdo, mas parece ser algo ainda muito atual, já que boa parte dos homens têm uma grande dificuldade de falar sobre o que sentem.
Outro ponto é a falta de referências positivas de masculinidade. O modelo antigo já não serve mais, mas há poucos exemplos de como os homens podem ser hoje. Culturalmente, parece haver uma grande resistência masculina à mudança. E isso não é só uma questão pessoal, mas também estrutural.
Nas pequisas para entender mais sobre o assunto encontrei o livro “The End of Men", da escritora Hanna Rosin. O livro foi lançado em 2012, mas tem uma teoria que segue mais atual que nunca, de que enquanto as mulheres avançam, muitos homens estão lutando para se adaptar às mudanças econômicas e sociais.
Rosin argumenta que as mulheres foram capazes de ser flexíveis e responder às transformações culturais, sociais e econômicas, enquanto os homens permaneceram rígidos. Isso tem feito com que os homens percam espaço no mercado de trabalho e enfrentem dificuldades para se reinventar em um mundo que muda rapidamente.
O Scott Galloway, teórico de marketing e autor, também aborda esse tema. Ele conecta a crise masculina à eleição de Trump, chamando-a de “eleição da testosterona”. Galloway argumenta que a dificuldade de se inserir no mercado de trabalho, a perda de renda e o poder de compra, além da frustração de não poder cumprir o papel de provedor (ainda fortemente associado aos homens), têm gerado um sentimento de desespero. Muitos homens, especialmente brancos e de classe trabalhadora, sentem-se deixados para trás pela globalização e pelas mudanças econômicas. Assim, Trump, como figura de força e dominação, ressoou com aqueles que se sentiam em crise.
Ou seja: a rigidez que os homens foram ensinados a ter não é mais uma vantagem competitiva. O mundo atual exige flexibilidade e adaptação constante. Todos os dias, surgem novas tecnologias e transformações que demandam aprendizado contínuo.
E de forma irônica, para as mulheres essa adaptação é mais natural. Nós somos socializadas sabendo que o mundo não foi feito para nós e que, para sobreviver, precisamos nos adaptar a ele. Desde cedo, ouvimos que o mundo é perigoso, que devemos nos comportar de forma adequada, que precisamos nos moldar às condições ao nosso redor. Quem diria que, por causa do machismo, as mulheres estariam mais aptas às demandas do mercado de trabalho de hoje? Seja qual for o papel que o mundo exija — mais comedida, mais atrevida, mais quieta, cuidadora —, fomos ensinadas a nos moldar. Sabemos como nos adaptar.
Claro, o mercado de trabalho continua opressor para as mulheres: salários menores, exigências maiores. Mas, no contexto geral, sabemos como nos ajustar. Empregos majoritariamente masculinos, baseados em força física, foram os primeiros a serem substituídos por robôs. Com o crescimento da inteligência artificial, trabalhos intelectuais tradicionalmente masculinos também podem ser afetados. Me parece que cada vez os homens serão pressionados a aprender a arte da resiliência.

Outro aspecto que acredito ter muito a ver com essa estagnação da masculinidade é o CUIDADO.
Homens não são ensinados a cuidar — nem de si mesmos, nem dos outros. Enquanto isso, mulheres são ensinadas a cuidar de tudo e de todos ao seu redor. Que não devem ter descanso enquanto tudo estiver feito e todo mundo satisfeito. O que faz com que o cuidado acabe virando um trabalho não remunerado para as mulheres, que acumulam muito mais funções.
Mas há beleza em saber o valor do cuidado: entendemos que o outro importa tanto quanto nós. Em um momento de epidemia de solidão, o cuidado é uma dos aspectos que nos conecta a algo altruísta e nos faz viver uma coletividade. Na essência, o cuidado é uma forma de viver menos egoísta, de construir algo para além de si mesmo. É sobre doação, algo que ainda nos salva um pouco nesta sociedade autocentrada.
Enquanto as mulheres são ensinadas a cuidar, os homens são ensinados a prover. E como o Scott Galoway falou sobre a eleição do Trump, quando os homens não conseguem prover a frustração toma conta, gerando um sentimento de inutilidade e insuficiência. Mas e se os homens aprendessem a cuidar? Não só de si mesmos, mas também dos outros, de suas casas, de suas comunidades?
Essa matéria do New York Times fala sobre como mais homens em em profissões de cuidado não é só melhor para a sociedade como um todo, mas que também impacta na economia, já que homens entrando em areas majoritariamente femininas podem ajudar a elevar os salários de algumas profissiões. E claro, também ajuda na quebra de esteriótipos: ao normalizar a ideia de homens como cuidadores, a sociedade pode começar a desconstruir a noção de que o cuidado é uma responsabilidade exclusivamente feminina.
“Não há nada mais poderoso do que ver exemplos de homens que realizam o trabalho nada glamoroso de cuidar, dia após dia, especialmente de crianças.”
Nesse vídeo, Gregório Duvivier fala sobre como a paternidade foi um caminho para colocar o cuidado na vida. Ele diz que viu no próprio pai um modelo de masculinidade diferente, baseado na amorosidade e no cuidado. Transformar a paternidade também faz parte dessa mudança dos homens para serem cuidadores.
Depois de tudo isso, acredito fortemente que o cuidado e a resiliência são essenciais para transformar a a masculinidade hoje. Podem ser ferramentas poderosas para sair dessa estagnação não só no mercado de trabalho, mas na sociedade como um todo. Talvez eles ainda ajudem em outros aspectos como a falta de vulnerabilidade e de modelos positivos. No fim, todo mundo ganha com isso. E homens, marquem seus médicos: começar cuidando de si é um baita começo.
Essa questão de ser o provedor, de atender às expectativas da sociedade e de uma parceira é muito angustiante e de fato me pega bastante.
E fico agora me questionando de onde veio essa pressão que... me próprio coloquei!? E que talvez caiba me libertar e ignorar quem me cobre.
Amei! Comecei a ler a parte do cuidado e de imediato me lembrei do Gregório Duvivier e eis que ele tá logo ali. Tem un episódio do Greg News sobre cuidado, feito na época da pandemia, que aborda super bem muito do que tu falou nessa partezinha final da News. Adorei, Monica! Colocando a gente pra pensar, como sempre! :)