O que acontece quando perdemos nossos rituais?
Em meio ao desaparecimento dos rituais tradicionais, itens como o calendário do advento surgem como uma resposta à nossa carência de surpresa, encantamento e tempo desacelerado.
Você já parou para pensar quais são os rituais que você não vive sem? Eu pessoalmente tenho um ritual muito específico, que toda vez que estou no aeroporto preciso tomar um café do Starbucks. Não sei de onde veio isso, mas parece que uma viagem vai ser incompleta se não tiver uma passadinha por lá antes.
Mas para além dos rituais de momentos especiais, existem os rituais mais cotidianos: o cafézinho pra começar o trabalho, o docinho pós almoço, o chá antes de dormir. Pessoalmente, tenho um ritual específico para o dia a dia também, que é desligar as luzes de cima e ligar os abajures quando termino de trabalhar. Como trabalho de casa, esse pequeno gesto marca pra mim o fim do horário de trabalho e o começo do meu tempo pessoal.
Um ritual pode ser super simples de executar, mas os significados que rituais possuem são complexos. Rituais são práticas repetitivas e simbólicas que servem para dar sentido e estrutura às nossas vidas e as coisas que fazemos. São maneiras de marcar o tempo e organizar a passagem dele. Podem ser algo banal, como meus abajures, ou algo grande e extremamente importante, como um casamento. São acontecimentos que criamos para marcar uma transição.
O Byung-Chul Han inclusive diz que os rituais “transformam o estar-no-mundo em um estar-em-casa”. Achei uma definição belíssima. É sobre gerar sentido para a existência, ajudando a criar um senso de pertencimento e estabilidade.
Além disso, os rituais também servem para reforçar identidades e construir conexões sociais. Não por acaso, grande parte das religiões é estruturada em torno de diversos rituais. Eles fortalecem o sentimento de pertencimento a um grupo e consolidam a identidade dentro daquele contexto.
Recentemente, um relato que me marcou muito sobre rituais foi no livro “As pequenas chances", da Natalia Timerman. No livro, a protagonista fala sobre a morte do pai e como foi todo o processo. Como são de família judia, ela relata sobre o Shivá, o período de luto oficial de sete dias que começa logo após a morte e que tem uma série de rituais para serem feitos durante essa semana:
“e eu, que nunca fui judia, quer dizer, que desde a adolescencia ignorei a religião da minha família, me vi de repente cumprindo cada ritual com um alívio impensável alguns meses antes, como se tudo que eu quisesse ou precisasse naquele momento fosse que simplesmente me dissessem como me portar ou o que fazer, que me dessem uma lista de tarefas para existir.”
E algumas páginas depois, ela conta como essa sequência organizada de rituais fez ela se sentir:
“Tudo o que nos orientavam a seguir, seguíamos. E aquilo fazia sentido. Pela primeira vez me senti amparada pela religião, não por Deus, mas pelos meus antepassados, que conheciam a dor que eu sentia e haviam inventado rituais que tentavam acolhê-la, amenizá-la, circunscrevê-la. O mero fato de que havia regras para o Shivá, a primeira semana de luto, que se inicia depois do enterro, parecia me dizer que a dor, por mais excruciante que fosse, por mais que bagunçasse o sentido de tudo, era conhecida e, de alguma forma, natural.”
Uma exemplo emocionante da força que um ritual pode ter.
Mas apesar de toda essa força e importância que os rituais têm nas nossas vidas, segundo Byung-Chul Han, eles estão desaparecendo. O autor fala que estamos em um momento onde há excesso de comunicação sem comunidade, onde vivenciamos muitas interações, mas sem vínculos reais. Por causa da conexão constante, a nossa vida social e o tempo estão fragmentados, causando a perda de rituais que servem para demarcação. Somado a isso, Byung também fala que o tempo acelerado que vivemos que preza pela velocidade e novidade, conflitua com o tempo mais lento dos rituais: “o constante update em todas as dimensões da vida não permite nenhuma finalização”.
Além disso, o autor também fala sobre uma desintegração do coletivo, que vem “sendo substituído por egos isolados que se exploram mutuamente". [Será que é por isso que a religião e o conservadorismo tem crescidos entre os jovens, já que são um dos poucos dos lugares que ainda oferecem rituais? Fica o questionamento.]
Só que esse desaparecimento do rituais tem uma GRANDE interferência nessa época que estamos vivendo, o final do ano. E esse desaparecimento é bem notável: aposto que provavelmente você diminuiu (se é que não parou totalmente) o número de amigos secretos que participou, comparado há alguns anos atrás.
E isso acaba tendo consequências complexas, já que o final do ano é a época que mais precisamos de rituais. Nós vamos, conforme dezembro vai chegando, criando marcos de que estamos nos encaminhando para o fim do ano. Montar uma árvore e decorar a casa é muito mais do que só deixar a casa bonital para o Natal: também nos ajuda a entrar no mood de fechamento do ano e, a partir dele, fazer as nossas reflexões, retrospectivas e planos para o próximo.
Por isso ficamos tão desconcertados quando vemos os panetones cada vez mais cedo nos mercados. Eles nos trazem aquela sensação “opa, pera lá, ainda não to pronto pra entrar nesse mood de finalização não”. Parece uma antecipação de algo que ainda não está pronto para acontecer.
E nesse vácuo dos rituais outras coisas vão tomando esse lugar, como os calendários do advento. Calendários criados para que seja aberto um presentinho por dia, durante alguns dias. Essa abertura gradual e a relação de ter algo para ansiar por um tempo, devolvem uma sensação de não aceleração, algo que leva quase o mês inteiro e vai aos poucos nos levando, junto com os presentes, para o final do ano como um todo.
Além disso, esses calendários ainda entregam outro aspecto que estamos muito carentes atualmente, que é SUPRESA e ENCANTAMENTO. É sobre ser surpreendido com o que vai estar naquela caixinha, sobre a curiosidade do presente do dia seguinte e sobre a expectativa positiva que isso gera. Sobre gerar magia e maravilhamento em tempos onde isso é tão difícil. No fim, pode parecer algo bobo, mas tem um significado bem poderoso por trás. Será que os calendários do adventos serão o nosso novo ritual de final de ano?
Desejo que o fim do ano por aí seja cheio de magia, encatamento e rituais, com calendários do advento ou não. Obrigada a todo mundo que chegou até aqui e leu a Ferve esse ano, sou grata demais. Nos vemos em 2025 ✨
Li atrasada a edição e perdi a chance de retomar alguns rituais de final de ano que estão esquecidos há tempos aqui em casa, justamente como montar a árvore. A preguiça e a sensação cada vez maior de que as coisas não são mais mágicas vão fazendo a gente terminar de enterrar todas as possibilidades de magia. Gostei muito da reflexão, vou pensar sobre isso e tentar incorporar mais rituais à vida. Fazem falta.