O custo da hiperconveniência é a solidão
Como o nosso vício atual em banir o desconforto tem nos deixado mais solitários
Quando viajei para o Japão ano passado, muita gente me perguntou se foi uma viagem difícil, principalmente por conta da barreira da língua que poderia dificultar deslocamentos, transportes, etc.
Mas na verdade eu achei uma viagem muito fácil. Não só porque as cidades são bem organizadas e fáceis de se locomover, mas porque a internet nos auxilia em absolutamente tudo. Compramos um chip online para ter internet full time, algo que foi super fácil de fazer pelo próprio celular, sem precisar ir numa loja ou comprar um chip físico. Com internet o tempo inteiro, era só acessar o Google Maps para saber onde ir. O Google Maps é tão preciso que não apenas indica qual linha de metrô pegar, mas também a melhor saída para chegar mais próximo do destino. O tradutor por imagem permite entender cardápios com facilidade. Além disso, o TikTok oferece dicas dos lugares para visitar e explica regras de etiqueta antes mesmo de chegarmos ao país.
O resultado disso? Fora os atendentes de lojas, restaurantes e bares, conversamos com pouquíssimos japoneses ao longo da viagem.
Pensando sobre isso, lembrei de um mochilão que fiz na Espanha em 2016. Há quase 10 anos, os stories do Instagram ainda não existiam, não havia maneira de ter 3G sem comprar um chip local e mudar de número, e dependíamos do wifi do Starbucks para poder acessar o Maps. O jeito era se virar com mapas físicos mesmo. Mesmo sendo um país com uma língua e cultura semelhante que a nossa, eu achei essa viagem mais difícil de fazer.
Mas ao mesmo tempo, eu me lembro de uma senhora que eu parei na rua para perguntar alguma indicação de caminho com o meu portunhol cachorro, e que elogiou o meu espanhol, perguntando onde eu tinha aprendido a falar. Falei pra ela que não sabia na verdade, mas escutava muitas músicas em espanhol e me arriscava um pouco, e conversamos por alguns minutos. Uma conversa que eu lembro até hoje, quase 10 anos depois, e que nunca teria acontecido se eu tivesse acesso ao Google Maps naquele momento.
Lembrei dessa história depois de assistir a dois conteúdos recentes que me marcaram. O primeiro foi um vídeo no TikTok:
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Nesse vídeo, o criador de conteúdo argumenta que as empresas não gostam quando as pessoas compartilham coisas. Se um amigo te dá carona para o aeroporto, você não precisa pedir um Uber e gastar dinheiro. Quando as pessoas compartilham coisas, elas compram menos. Ele sugere que muitas pessoas se sentem solitárias e sem comunidade porque escolhem conveniência acima de tudo. Uma frase que me marcou foi (em tradução livre):
“Como empresa, o tipo de pessoa favorita em um ambiente capitalista provavelmente é alguém hiperindividualista, já que essa é a pessoa que vai pagar qualquer preço pela conveniência.”

O segundo conteúdo que me impactou foi a palestra do Scott Galloway no SXSW, que assisti no último fim de semana. Não encontrei mais o vídeo oficial para compartilhar aqui (acho que foi tirado do ar pelo canal), mas Scott fez suas já conhecidas projeções para o ano. Um dos pontos que se conecta diretamente com esse tema foi sua afirmação de que o maior efeito da IA não será a substituição de empregos, mas o aumento da solidão.
“A maior ameaça nos Estados Unidos agora é, na verdade, a solidão. As empresas mais inteligentes e ricas do mundo, com a maior concentração de tecnologia da informação da história, basicamente têm uma única missão: tentar convencer os jovens, principalmente os homens, de que eles podem ter uma imitação razoável da vida em uma tela, através de um algoritmo. Por que passar pelo esforço de fazer algo diferente? Para fazer amigos? Você tem o Reddit e o Discord.”

Um exemplo que ele trouxe foi o crescimento das relações românticas com IA. Segundo dados do Google Trends, em 2024 houve mais de 1,6 milhão de pesquisas em inglês para o termo AI chatbot girlfriends.
Esse é mais um exemplo de como a hiperconveniência pode levar à solidão. Afinal, não há nada mais conveniente do que namorar uma inteligência artificial que nunca discorda de você e responde instantaneamente. Mas isso pode deixar as pessoas completamente despreparadas para relações reais, que envolvem conflitos e discordâncias. Relações hiperconvenientes só existem com máquinas.

Falando em SXSW, uma das palestras que tenho visto reverberar foi a de abertura, na qual Kasley Killam, cientista social de Harvard e especialista em conexões humanas, falou sobre SAÚDE SOCIAL. Ela apresentou um estudo mostrando que pessoas com mais interações sociais tiveram sintomas mais leves e se recuperaram mais rápido de uma infecção por gripe. O argumento de Kasley é que a qualidade das nossas relações é tão importante para a saúde quanto exercícios físicos ou alimentação equilibrada. E que conexões em redes sociais são como “calorias vazias”.
O fato de esse tema ter aberto um dos maiores festivais de inovação e tecnologia do mundo mostra o quão urgente ele é. Precisamos agir como sociedade para reverter. A solidão é uma epidemia e uma prioridade de saúde global desde 2023, segundo a OMS. É responsabilidade de governos, empresas e órgãos criar soluções para mitigar esse cenário.
Mas precisamos lembrar que a sociabilidade tem um preço: ela é imprevisível e, às vezes, desconfortável. Precisamos nos reacostumar com esse desconforto. O desconforto dos primeiros dates, das conversas com desconhecidos em que é preciso puxar assunto. O desconforto de dar carona e fazer um pequeno desvio para ajudar um vizinho a economizar um Uber. O desconforto de conversinhas de elevador.
Mas, depois do desconforto, conexões maravilhosas podem acontecer.
Nossa, que texto excelente! Minha cabeça explodiu um pouco e isso me fez lembrar das vezes em que cogitei comprar coisas por algum aplicativo de entrega (pagando mais caro e com frete) só pra não ter que sair de casa e interagir com outras pessoas, simplesmente para não lidar com esse desconforto. Sinto que estamos desaprendendo uma característica essencialmente humana: a de socializar, mesmo que por natureza sejamos seres sociais, parece que nós últimos tempos estamos tentando excluir a importância disso na nossa vida, as informações que você trouxe me fizeram pensar sobre os porquês disso. Obrigada por compartilhar 💜
cara, que texto maravilhoso! eu tenho pensado muito sobre isso e sempre acreditei que criatividade (meu tema do coração) só acontece com conexão da gente com a gente mesma, com os outros e com o mundo. e é engraçado perceber que a humanidade tá indo por um caminho contrário, né? fico pensando na questão do "terceiro lugar" e como o capitalismo tirou da gente espaços de convivência que não estimulam o gasto de dinheiro e são essenciais pras interações sociais e construção de comunidade. pra gente ver que esse é um projeto governamental e empresarial que vem muito antes de AI e do mundo distópico que a gente viu no filme Her, né?