Como nos comportamos frente ao apocalipse?
A expectativa dos filmes em relação à realidade
Nessa semana onde o Brasil está coberto por uma nuvem de fumaça e o ar de São Paulo está tornando muito difícil a simples atividade de respirar, tenho pensado muito em uma novela do livro O deus da avencas, do Daniel Galera. A história retrata um homem que tem que lidar com questões familiares através de uma novidade tecnológica que deu errado, mas não é nisso que fico pensando.
O que tenho lembrado o tempo inteiro é o cenário que a história se desenrola: uma São Paulo onde viver ao livre tornou-se impossível. Por causa das altas temperaturas, apartamentos viraram fazendas tech para produção de alimentos. As pessoas se locomovem por tuneis refrigerados subterraneos, os prédios são todos cobertos por painéis solares para obtenção de energia e a iluminação é toda artificial. De dentro do meu apartamento de janelas fechadas com um mini umidificador ligado 24h por dia, penso que talvez não estejamos muito longo desse mundo fictício do Galera.
A novela não conta as etapas de transformação da cidade até chegar nesse estágio (até porquê não é o ponto da história), apenas cita alguns acontecimentos como um apagão global e uma excessez de metais. Mas quando pensamos em história desse tipo, estamos acostumados com narrativas onde sempre há um dia derradeiro em que algo irrompe. Aquele cenário típico dos filmes onde um absurdo gigantesco acontece e muda toda a vida como conhecemos. As produções mais recentes que seguem esse script que consigo pensar são The Last of Us e Um lugar silencioso. A ordem é mais ou menos essa:
Algo absurdo ocorre e ninguém sabe o que está acontecendo, tudo colapsa e as pessoas ficam agindo que nem malucas pela cidade;
Algum orgão oficial como o exercito e/ou o governo tenta dar um jeito nas coisas, nem sempre com sucesso;
Entende-se do que está acontecendo e como se deve agir para lidar com o acontecimento;
A partir daí a sociedade se transforma completamente e se vive a vida a partir dessa nova organização
Por muito tempo esse foi o imaginário que tivemos a respeito dos ~grandes acontecimentos que mudam tudo. Mas, quando a gente olha para o ~último acontecimento que mudou tudo, a pandemia, vemos que a realidade é bem diferente. As mudanças são lentas, gradativas, não acontecem no mundo inteiro de uma vez só e nem de maneira igual, cada lugar pode ser afetado de um jeito. Além disso, vimos que orgãos oficiais as vezes nem sabem o que fazer, ou até sabem, mas se recusam ou são muito lentos na ação. E há mais uma questão que vivemos na pele e que não é retratada nos filmes: o trabalho segue acontecendo.
Inclusive nos filmes a sensação que dá é que a noção de propriedade privada se modifica. Criam-se novos formatos de organizações onde outros elementos passam a ser valiosos, mas a ideia de acumular capital e bens parece não fazer muito sentido.
Só que bem diferente da ficção, nesse cenário onde a fumaça invade e seguimos batendo ponto, o consumo até pode se intensificar como uma válvula de escape para aliviar a angústia. E me parece que esse consumo pode acontecer de duas formas:
Focando no hoje, aproveitando o momento e se permitindo ser mais incosequente financeiramente
Focando no futuro, com itens que possam ajudar em uma tentativa se preparar de alguma forma, buscando uma sensação de segurança para algo que não há como ter nenhum controle.
Em relação ao primeiro aspecto, comecei a perceber esse comportamento depois de ver muito tuites nesse mesmo estilo. Aquela compra que talvez fosse um pouco “exagerada” ou “desnecessária”, recebe uma motivação incontestável, já que “poupar para o futuro” não funciona mais como um porém. Eu chamei de "consumo do fim do mundo", mas depois de pesquisar sobre o assunto, descobri que existe até um termo para isso: Doom Speding. Uma espécie de foda-se financeiro, onde a resignação em relação ao futuro predomina e gasta-se com foco em aproveitar o hoje ao máximo.
Já a segunda forma de consumo foi uma tendência que descobri com minha amiga Débora. Nos EUA há empresas especilizadas em montagem de kits emergenciais, com suprimentos essenciais para desastres. A Ready America, uma dessas empresas, cresceu 83% entre 2017 e 2022 e, na semana que antecedeu a tempestade tropical Hilary na Califórnia, aumentou em mais de 350% a venda de mochilas de emergência. No Tiktok também é possível encontrar vários vídeos de dicas e itens essenciais para montar seu próprio kit.
Claro que o consumo não é a unica forma de lidar. Enquanto nos filmes vemos os personagens determinados à sobrevivencia, agindo e se movimentando em frente ao caos, na realidade temos um sentimento paralisante de ANSIEDADE CLIMÁTICA. A sensação de despreparado para lidar com as questões que já estão aí, enquanto assistimos o despreparado das instituições públicas para lidar com os acontecimentos, gera um sentimento de total desemparo.
O termo original para descrever a sensação, “ecoansiedade” foi criado por um grupo da Universidade de Berkeley, em 1989, apesar de estar mais atual do que nunca. Ainda em 2023, as buscas no Google pelo termo 'ansiedade climática’ já haviam aumentado 73x em relação aos 5 anos anteriores. E esse ansiedade climática tem grande influencia sobre as gerações mais novas, que estão planejando o seu futuro em um mundo que não oferece muita perspectiva de futuro. Em uma das pesquisas mais famosas sobre o assunto, do The Lancet, feitas com jovens de de 16 a 25 anos, 75% disseram que acham que o futuro é assustador.
Mas, um aspecto que provavelmente vai acontecer de forma semelhante ao que o imaginário dos filmes construiu é a transformação das cidades. Em uma pesquisa do USA Today/Ipsos, muitos americanos afirmam que as mudanças climáticas não mudarão apenas como eles vivem, mas onde eles viverão. Cerca de um em cada quatro diz que ficará mais difícil permanecer na área em que vivem atualmente por causa das questões climáticas.
Sobre esse ponto, impossível não falar do Rio Grande do Sul e as consequências da enchente de maio. Amigos que moram na cidade relatam como os bairros que sofreram inundações foram completamente modificados. O centro histórico, que era um das regiões mais vivas da cidade, segue com muitos locais que ainda não conseguiram se recuperar. E isso já está se refletindo no mercado imobiliário da cidade. Segundo dados da GaúchaZH, bairros diretamente afetados tiveram queda de 35% no número de imóveis alugados, enquanto outros locais apresentaram aumento de até 20%. Uma outra pesquisa realizada pela ACI-POA mostrou que 65% dos compradores estão priorizando imóveis em áreas com menor risco de enchentes.
E como boa parte do que vivenciamos hoje, é impossível não falar das questões de classe relacionadas ao impacto das transformações climáticas. Em Porto Alegre, não só áreas mais pobres foram mais afetadas pela enchente, como há relatos de lugares que seguem sem luz e com lixos pela rua. Apesar de sol estar vermelho e tapado por fumaça para todos, o acesso a recursos para lidar com o desconforto que isso causa é diferente para quem tem melhores condições financeiras.
Desde os últimos anos, a nossa vida como sociedade foi altamente transformada. A pandemia mudou tantos comportamentos que ainda nem conseguimos entender todos eles. E estamos no mesmo caminho com o clima. Parafraseando esse post do Hugo Pontes, as transformações climáticas não são mais um evento, são tão cotidianas quanto nossa própria vida.
Amei, penso nisso tudo desde o início da pandemia e, pra acrescentar, só recomendo o livro "The Ministry for the Future" do Kim Stanley Robinson. É um tijolão, parece q não foi traduzido pro português, mas fala de questões climáticas de um jeito que eu nunca vi ninguém fazer: com uma quase-utopia.
Ele é um autor de sci-fi, então entende bem de fins-de-mundo, mas nesse livro ele mostra tudo o que poderia ser feito, ainda, pra reverter o desastre. Coisas como incentivos fiscais pra redução de carbono, contenção do derretimento das geleiras perfurando elas (não entendi direito, mas deve ter fundamento), etc... Mas o ponto mais realista é que tudo só começa a ser feito, muuuuito lentamente e muuuuito burocraticamente, tendo que convencer muita gente rica de que é um bom negócio cuidar do futuro, depois que uma cidade inteira morre, literalmente, de calor. =)