Ainda existe espaço para a coletividade?
A força de viver momentos de emoções em conjunto.
Desconfio que não seja novidade para ninguém que estamos vivendo tempos extremamente individualistas, onde o Eu sobressai à coletividade. Lá nos anos 2000, quando apresentou o conceito de modernidade líquida, Bauman já cantava essa pedra. Para ele, uma das consequencias dos tempos de incertezas e mudanças constantes é o enfraquecimento de instituições tradicionais, como família e organizações comunitarias. Sem o apoio e segurança dessas redes, os individuos se veem forçados a se tornarem mais autossuficientes.
Esse enfraquecimento das instituições não aconteceu do nada. Veio principalmente da infiltração do neoliberalismo na nossa cultura e todas as consequencias que isso trouxe, como a aceleração da globalização, a precarização do trabalho e o reforço dessa responsabilização individual, onde somos os unicos responsáveis pelo nosso sucesso e felicidade.
Isso abriu um terreno extreamente fertil para eles, os famosos coachs de redes sociais. Uma galera que ganha dinheiro propagando mensagens extremamente rasas, reforçando de maneira incansavel o discurso de que ✨ você é o unico responsável pelo seu sucesso✨. Algo extremamente conveniente para que em seguida ele possa dizer que você não conquista nada se não trabalhar 80 horas por semana (para ele, sem pagar hora extra).
Além disso, há o boom dos algoritmos que nos deixaram viciados em conveniência. Tudo é moldado exatamente para nós, selecionando nossos gostos e deixando produtos e serviços do nosso jeitinho, junto com mensagens de "você no controle” ou “onde e como você quiser".
E quanto mais vamos reforçando esses discursos de individualidade, de que tudo pode ser do nosso jeito e que somos os únicos responsáveis pelo nosso sucesso, vitórias, felicidade e uma vida inteira, de que ninguém vai olhar para gente além de nós mesmos, vamos cada vez mais sentindo que não podemos perder tempo fazendo pelo outros. Já que ninguém vai fazer por mim, por que eu devo fazer algo pra essa outra pessoa? E assim seguimos retroalimentando esse ciclo vicioso de individualidade.
Não é a toa que estamos vivenciando uma epidemia de solidão, uma falta de confiança nas organizações e uma grande dificuldade de mobilização social, várias questões decorrentes desse isolamento. Não me lembro onde li essa frase, mas ela me marcou muito porque acho que resume bem essa questão: “ninguem mais quer resolver os problemas do mundo, todo mundo só quer ganhar dinheiro o suficiente para não ter que lidar com eles”.
Só que não tem como essa individualidade extrema ser boa, porque nós somos seres intrinsecamente sociais. A interação e a organização social são fundamentais para a existência e a identidade humanas. É na interação com o outro que a aprende e se desenvolve, que a gente se entende como pessoa, que a gente descobre como o mundo funciona. É na interação com os outros que a gente vive uma vida.
Recentemente eu vivi duas experiencias que me impactaram fortemente e me fizeram pensar muito na questão da coletividade:
A primeira delas foi uma oficina de colagens, em um grupo de 14 pessoas. Antes de partir pra mão na massa, tivemos um momento de troca onde falamos sobre criatividade e processo criativo. Todo mundo trouxe pra mesa algum ponto de aflição, alguma dor em relação à sua criação ou ao seu trabalho. Foi um acalanto ouvir que aquelas pessoas que até aquele momento eram estranhos passam pelos mesmas dores que eu no dia a dia. E a segunda parte da oficina, onde produzimos as nossas colagens, foi algo que me deixou eletrizada. Compartilhar um momento de criação de arte é algo muito poderoso e que eu nunca tinha vivenciado. Poder imergir num processo criativo que é individual, mas estando junto de outras pessoas que estão fazendo a mesma coisa é realmente mágico.
A segunda experiencia foi uma prova de corrida que meu namorado participou. Eu não corro, mas só de acompanhar ele na prova eu entendi porque as corridas de rua tem ganho tantos inscritos. Ver aquele mar de gente ocupando a cidade de maneira conjunta, enquanto o dia amanhecia e as ruas ainda estavam vazias, quase que vivendo algo particular foi legal demais. Além disso, acompanhar a chegada, ver cada uma daquelas pessoas superando a si mesmas, fazendo seus esforços, me fez sentir orgulho por pessoas que eu nem conhecia. É uma energia realmente emocionante.
A sensação de satisfação depois dessas experiencias foi tão grande que eu cheguei a sentir no corpo. Uma leveza que perdura, que te faz cantarolar enquanto passa um café pois faz você lembrar que não está sozinho nessa jornada caótica que é a vida.
E não dá pra falar de coletividade sem falar dessas ultimas Olimpiadas. Além dos discursos de atletas como Rayssa para a gente não torcer que as outras competidoras caiam, é um momento onde deixamos de lado as diferenças internas como país e colocamos toda a nossa energia em ver as ginastras cravando no solo. Mesmo com o orgulho nacional em baixa, nesses momentos de competição a gente se se sente mais brasileiro do que nunca.
Em contraponto, tenho pensado muito em uma experiência coletiva que tem sido muitas vezes negativa: ir ao cinema. Provavelmente você deve ter passado por alguma chatice no cinema pós pandemia. Gente que fala alto ou que pega o celular com o brilho no 1000% na sala escura 🫠. Nas vezes que fui ao cinema voltei pra casa com a sensação de que, como sociedade, estamos com baixíssima paciencia e tolerancia para viver momentos onde preciso suprimir uma vontade (como olhar o celular) pelo ganho coletivo (não incomodar ninguém).
E isso me levou a pensar que na verdade, o cinema não é uma experiencia tão coletiva assim. Claro que é uma sensação muita boa quando você compartilha uma gargalhada de um momento engraçado com uma sala inteira. Mas estar em conjunto e compartilhar os sentimentos não é o objetivo que nos leva para lá. Não compartilhamos nada além da tela. E o cinema é apenas um exemplo, pois a questão aqui não é o cinema em si, mas o que atualmente tem nos levado a sair de uma inercia indivualista e procurar momentos em que realmente compartilhamos uma vivência que olhe para o todo.
O que me parece, é que não sentimos tanta vontade de estar em grupo apenas por estar, porque temos uma grande preferencia pela nossa comodidade em primeiro lugar. Mas o que queremos é VIVER EMOÇÕES EM CONJUNTO. Uma coletividade ativa, e não passiva, que vivencia uma vulnerabilidade e sensações em grupo. Claro que com espaços e momentos desenhados para isso (como a oficina que foi planejada por alguém, a prova de corrida que foi organizada por uma marca e as Olimpiadas que são um evento marcado), que permitam que eu tenha as minhas emoções individuais, mas fazendo parte do todo.
Tudo isso pra dizer que: eu acredito muito na coletividade. A sensação de pertencimento de grupo, sentir que se faz parte de algo é algo muito poderoso (a extrema direita sabe muito bem disso, inclusive). Talvez essa cultura de individualidade suprema seja um caminho sem volta, mas eu acredito que a gente pode se lembrar com frequencia de que o nosso ~tecido social~ é um cobertor de patchwork.
Empresto a frase de Vinícius de Moraes, que diz que “a vida é a arte do encontro”, para manifestar entendendo o que nos move para a coletividade, a gente crie mais espaços e momentos de emoções compartilhadas, para resgatar pelo menos um pouco de coletividade pulsante que faz a gente se sentir mais vivo.
Ps: Como não fazemos nada sozinhos, preciso agradecer quem me ajudou a colocar essa newsletter de pé. Um agradecimento mega especial à Débora Fritzen que me ajudou a chegar no nome, Diego Oliveira que criou a identidade visual e Manu Barem que me ajudou a estruturar a news. Compartilho essa emoção especialmente com vocês. ✨
Adorei! A potência de viver algo coletivo é transformadora. Me colocou a refletir muito, Mônica :)
Fiquei aqui pensando.. a experiência coletiva do nosso tempo é paradoxal, não acha?
É muito louco que para vivenciar a coletividade, em muitas situações, a gente tenha que pagar, né?
Não é algo espontâneo, onde nos reunimos para partilhar de algo.
Se tornou intencional, atravessada pelo consumo e me explico - pagar pra fazer o curso, para ir na corrida, para fazer parte da comunidade XYZ, para acessar canais de transmissão de pessoas que pensam parecido e possamos ter espaço para compartilhar e pertencer.
Não por acaso, tivemos o boom das comunidades pagas (que não param de pé como negócio mas precisam de recursos para se manter). Quem tá afim de estar no coletivo do nosso tempo, precisa ter recursos...
Será que o acesso à coletividade do nosso tempo tá a venda?
Adorei! O comodismo nos leva a fazer tudo no nosso jeito, mas sinto falta desse espírito comunitário também.
Já tive a experiência de correr na rua e a energia é realmente contagiante.
Sobre o cinema, adoro a experiência, mas confesso que tenho ficado com bastante preguiça de ouvir as pessoas cochichando o tempo todo.